A lua cheia no céu e meu útero vai aos poucos se enchendo de sangue. Tudo represado aqui dentro. Ainda não choro, nem sangro. Não tenho conseguido escrever mais de dois parágrafos, embora muito sinta.
O temor pela pandemia cede espaço às notícias da guerra, que acontece longe, na fronteira da Rússia com o Leste Europeu, e assim não nos impede o carnaval. Por aqui, quem teve dois anos de sua juventude roubada em isolamento social agora tem sede de viver. Normalizamos algumas centenas de mortos por dia. Vacinados, nos sentimos protegidos. Retornamos às ruas.
Um velho amigo, gordo como nunca, na encruzilhada às três de madrugada faz da garrafa de 600 sua long neck. No que bebe e conta com voz grave as mesmas piadas de sempre, cumpre seu papel social de dar cor à noite.
A mesma cena que vivi incontáveis vezes há treze anos atrás se repete na minha frente. As esquinas gargalham, a vida pulsa e transcorre seu curso natural. Sua presença espalhafatosa me enche de prazer, mas ao mesmo tempo me desperta alguma angústia.
Não sei se somos mais amigos, ou se apenas fomos.
A gasolina quase oito reais o litro; o salário mínimo, pouco mais de mil. Não tem mais Uber na rua, não vale a pena para os motoristas. O amigo me traz em casa. No caminho pergunto de um outro amigo em comum, carne e unha no passado, uma admiração danada um pelo outro.
“Não sei dele”
“Virou ela, você sabe, está fazendo a transição”
“Fiquei sabendo”
“Vocês não tem se falado?”
“Não muito”
“Brigaram?”
“Não, mas ele andou falando umas coisas por aí…”
“Insatisfações?”
“É… Relação em que há violência não pode haver carinho”
“Ela sofre muito, você sabe… aí fala demais”
“Isso todo mundo, eu e você também; mas não justifica”
“Eu tô de boa, pra ser sincera, tenho sofrido muito não”
“Bom, de qualquer forma ele vai ter sempre a minha amizade, o que ele precisar de mim, terá.. Agora, relação, convivência… aí já é demais”
“Entendi, também estamos meio afastados”
O clima fica meio tenso e mudamos de assunto. A namorada dele comenta do Renato Ernandes, que naquela noite estava comportado, bonitinho. Alguém comenta rindo do quanto ele tem cheirado.
“Vocês convivem de dia?”, pergunto.
“Sim, super, ele é um amor”.
Sinto uma pontada de inveja porque ele convive de dia com o Renato Ernandes, que é um tiozão esquisito (mas bonzinho) barrigudo e cheirador de pó, mas não convive comigo. Falo pra gente marcar, “estou cozinhando super bem, sem falsa modéstia, você também que eu sei, vamos fazer um almoço juntos” ao que ele responde que sim, embora no fundo eu saiba que isso nunca vai acontecer. Agradeço a carona e me despeço.
Sou muito curiosa e comunicativa…
Eu tenho muita facilidade em conhecer pessoas, mas não necessariamente a mesma facilidade em nutrir relações.
Sempre admirei pessoas que tem grandes e sólidos grupos de amigos, que estão juntos todos os fins de semana. Depois de muito tentar pertencer, entendi que meu afeto não funciona assim. Nunca consegui desenvolver grandes laços com todas as pessoas de um mesmo grupo (e nem sei se acredito muito nisso) e acaba que depois de um tempo eu enjôo dos mesmos assuntos e dinâmicas.
Tenho pessoas pontuais que amo profundamente em grupos diversos espalhados pela cidade. Grande parte dos meus melhores amigos mal se conhecem entre si. Fora estes, mais recentes, que estão na minha vida de uns oito-dez anos pra cá; tenho melhores amigas de vida, que estudaram comigo na escola e conheço profundamente há vinte anos.
Ainda assim, às vezes sinto uma carência muito grande, que se agravou na pandemia mas é de antes.
Sei que por um lado colho o que plantei.
Meu decênio dos 20 aos 30 foi marcado por uma inquietude social imensa. Eu gosto de gente, eu trabalho com gente, com cultura. Eu tinha uma sede de me expressar, me trocar, de aprender.
Meio que sou daquele tipo de gente que gosta de assunto novo o tempo todo, me canso das mesmas conversas, dos mesmos rolês. Acho que possuo um problema com o tédio nas relações.
Será que um dia encontrarei minha turma? Será que sou uma pessoa de turmas?
De tanta gente que eu conheci e conheço, quem ficou?
Na rua
Sou boa em conhecer gente, mas não necessariamente em manter amizades. Já vivi muito, mas vivo mais no presente e ansiando pelo futuro do que no passado.
Tenho, claro,
Tenho memória fraca. Não vivo
Na rua encontro pessoas que dizem me admirar mas
Quantas pessoas passaram pela minha vida, quantos amigos. Quantos eu soube nutrir? Quantos estão longe pela pandemia?
Não dou conta de quem me chama
Não dou amor direito pros meus pais
não sustento presença perto deles
mas os amo tão profundamente
e ao mesmo tempo quem mais me ama
o relacionamento que eu tenho
provavelmente será como todos os outros
acabou nunca mais vou ver nem a sombra