Nunca vou esquecer de uma conversa que tive certa madrugada num copo sujo há mais de uma década atrás. Eu era bem jovem, pique 19-20 anos, essa idade em que os universitários acham que têm as respostas para todas as dores do mundo.
A gente bebia de pé na calçada e a lua tava cheia. Lembro disso porquê foi pra ela que olhei de soslaio buscando recuperar o fôlego depois do que ouvi da minha interlocutora, uma mulher negra, MC e arte-educadora.
Ela respondia a um comentário meu que dizia amar “o clima das favelas, os botecos, as mercearias, os salões de beleza… os meninos do corre vendendo praticamente na frente daquele tanto de igreja evangélica, o pessoal terça feira à noite fazendo churrasco na rua”.
“Quem romantiza a favela é porquê nunca viveu. Favela é treta. Uma coisa que eu acho engraçada é que vocês que nasceram e cresceram em berço de ouro precisam entrar na faculdade pra descobrir a luta de classes, aí se enchem de discurso. Eu não precisei de fazer vestibular nem ler livro nenhum pra aprender sobre a desigualdade ou a luta de classes porquê vivo ela na pele desde que nasci”.
Acho que essa foi uma das vezes que fiquei mais sem graça em toda a minha vida: eu perdi o chão. Mas esse “sacode” foi uma lição que levei comigo à partir de então. Certos aprendizados são igual tomar o primeiro porre, é melhor que aconteçam logo cedo na vida. Cê passa seu vexame enquanto é novo e então fica mais ligeiro daí em diante.
Assim espero que tenha sido, pelo menos.
Trago essa memória porquê hoje quero falar sobre auto-educação política, um processo que acredito ser pra vida toda, e esse caso toca em alguns pontos que considero importantes.
Nesse texto aqui falei sobre a importância de dar dois passos pra trás no consumo de torrentes de notícias em tempo real (que muitas vezes só nos paralisa e mata de raiva) e consumir mais livros que nos permitam refletir criticamente e compreender a estrutura por trás dos acontecimentos… Assim como ter acesso à ferramentas, alternativas e exemplos históricos de resistência.
Maaas, como já escrevi em alguns textos, embora eu seja uma pessoa curiosa e com interesse em política, que ama ler… confesso que gosto mais de literatura do que de sociologia. Acho que eu tenho meio alergia (ou trauma) do academiquês.
Tenho preguiça da forma quase cifrada que a maioria dos textos universitários é escrita, e por mais que muitas vezes eu tenha vontade de voltar a estudar, tenho medo que a Universidade mate o prazer que tenho de fazê-lo.
Antes de tudo é importante ressaltar que o fato deu ter críticas à forma como a Universidade se organiza, produz e apresenta seu conhecimento… não é uma crítica à pesquisa ou ao ensino superior em si. Pelo contrário, eu só gostaria que ela fosse mais horizontal, inclusiva e popular… e menos uma torre de marfim produtivista. É só isso.
Ao mesmo tempo, o caso que inicia o texto é um exemplo de um outro lado da moeda:
Nem tudo é leitura. A vivência tem um saber imensurável. E portanto, a escuta vale ouro.
Como alinhar todos esses pontos, aparentemente paradoxais?
Bom, eu não tenho uma resposta universal, só posso falar do caminho que eu escolhi traçar. Esse desejo de me educar politicamente nasceu do cansaço de sentir raiva e impotência perante toda a merda que se instala no mundo.
Já há muitos anos eu coloco como meta de fim de ano “fazer mais pelo social”, “me aliar a algum coletivo político”, etc, etc. Eu me sentia me sinto uma imbecil de só ler e compartilhar notícias nas redes sociais com o estômago borbulhando de ódio, enquanto os braços permanecem cruzados.
Como ainda não sei muito bem o que fazer, resolvi estudar.
É claro que eu gostaria de ler, sei lá, Foucault, Deleuze e Guattari. E acho que um dia vai rolar… mas não agora.
Como traço estratégia pra tudo na minha vida, dos livros que vou ler, aos filmes que vou assistir… também tracei estratégias de como se daria esse meu processo de formação política auto-didata.
Lembrando que meu objetivo não é virar uma cientista política, mas só ampliar minha consciência crítica e principalmente minha capacidade de organização no mundo.
Se minha meta é ler 50 livros por ano, são mais ou menos 4 livros por mês. Desses a grande maioria vai ser literatura, não tem jeito.
Na cota de não ficção vou dosando os interesses: espiritualidade, produtividade (sou dessas, desculpa quem não gosta), criatividade, arte… e em menor dose: política.
Acredito que com o passar do tempo, construindo o hábito da leitura e repertório à partir de livros de política escritos para o público não acadêmico… daqui há uns anos eu já tô pegando uns trem mais denso pra ler.
Embora eu acredite que Habermas possa sim ter coisas muito interessantes a dizer, com meu academiquês enferrujado eu não dou conta de acessar esse conhecimento no momento. Sei também que embora ler O Capital possa ser uma experiência muito interessante, não é minha prioridade agora. Vou na medida da minha perna.
Leia: Como quadrupliquei meu hábito de leitura em 2 anos
Leia: Uma volta ao mundo através dos livros: Planejando as leituras do ano
A arte como fermento do pensamento crítico
Tenho amigos “intelectuais” que parece que se orgulham em dizer que “nossa nem sei há quanto tempo não leio literatura, só leio filosofia”. 😴
Sinceramente, acho que eles tão dando é mole. Pra mim isso de não ler literatura é tão estúpido quanto sei lá, parar de ver filme. Não faz sentido.
A literatura pode ser uma ferramenta excelente para aprender sobre História (com H maiúsculo) e política, ainda mais quando você deliberadamente opta por consumir obras de autores de origens e vivências múltiplas e distintas.
Existem vários livros que são extremamente políticos, assim como discos, filmes, pinturas, quadrinhos, etc, etc. Ao se manter aberto a consumir esse tipo de produção artística mais crítica a gente aprende um monte, e aí é claro que a educação mais teórica e formal só tem a somar e embasar essa nossa percepção mais intuitiva da organização social.
Além disso, no momento em que nos propomos a olhar para o mundo a partir de outras perspectivas através da arte… nos tornamos mais HUMANOS. E pelo menos pra mim, isso é tão importante (ou mais) que dominar livros de economia ou teoria política.
Bom, de qualquer forma, às vezes eu tenho vontade de voltar pra escola e ter as aulas de história de novo, com a consciência crítica que tenho hoje. Já que isso não é possível,
Eis como organizo meus estudos:
1°) Fiz uma lista dos assuntos que tenho vontade de saber mais. Por exemplo:
História Mundial (Imperialismo, Revolução Russa, 1a e 2a Guerra, Maoísmo, Revolução Cubana, Zapatistas, Influência dos EUA nas ditaduras Latino-Americanas, Guerra do Golfo e Guerra do Vietnã, Resistência Indiana – Gandhi, Apartheid sul-africano, Mandela, etc)
História do Brasil (O governo do PT, acertos e erros; o Golpe de 2016; Revoluções no Brasil; Lampião, Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro; Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas, etc)
2°) Entendendo os temas que me interessam, procuro livros de não-ficção que abordem eles. Coloco na minha listinha de livros de política. Aí vou encaixando eles na minha lista de leituras mensal, de acordo com a minha curiosidade naquele mês/bimestre.
3°) Me abro a consumir arte (livros e filmes) que aborde temas políticos e eventos históricos.
4°) Além disso, gosto muito de rap, que é um estilo musical tradicionalmente crítico, e gosto de acompanhar a produção contemporânea… e ouvir o que a juventude tá dizendo.
Bom, esses são alguns exemplos de como EU faço, mas existem milhões de formas de fazê-lo.
Tenho certeza que tem muita gente que aprende muito no Twitter seguindo as pessoas certas e lendo boas threads. Tem as pessoas que são fãs de podcasts, e outras de canais no YouTube.
Existem sim algumas opções fantásticas de ambos os formatos, mas EU especificamente prefiro ler livros do que ouvir podcasts, ainda que sim, eu sei, cumprem funções distintas.
Como já diria Luziana Lanna (risos) “pessoas diferentes precisam de métodos diferentes“. O objetivo desse texto não é falar faça assim ou faça assado, mas o mais importante de tudo é: se mantenha aberto, interessado no coletivo e em expandir seu conhecimento e ação no mundo. E assim, vá atrás da forma de aprendizado que for mais útil e prazerosa pra você.
Ainda sei pouco e tenho várias lacunas na minha formação, mas sou curiosa e persistente e espero manter minha cabeça aberta e continuar estudando até ficar bem velhinha.
De qualquer forma, que nos instrumentalizemos e nunca deixemos de lutar pelo mundo que acreditamos.