E desde quando mulher gosta de sexo? O desejo e prazer feminino em Jorge Amado

Lá fora a desgraça! A doença, a morte, o fascismo bolsonarista. Aqui dentro, o isolamento, a vida reduzida a saudades. Exilada em meu próprio país, ler Jorge Amado é como receber uma carta de um velho companheiro relatando as memórias do Brasil que amo.

Um Brasil que conheci, antes de tudo, dentro de casa. As festas de Natal com mesa de boteco de alumínio e toalha grudenta de plástico por cima, salpicão e cerveja, o som do DVD do “Fundo de Quintal ao vivo” se misturando ao riso e a falazada dos parentes.

As conversas que se dão num outro português, uma língua diferente da ensinada na escola, composta basicamente por frases de duplo sentido. As crianças escutam atentas mas fingem não prestar atenção. Quando não entendem coisa ou outra, um primo poucos anos mais velho explica, cochichando.

Minha avó, mãe de oito, à princípio acompanha o movimento de longe. Deitada no sofá ou na rede, tem a seus pés um tamborete com uma pilha alta de jornais e revistas de fofoca. Um olho no peixe outro no gato, observa divertida as reações das pessoas que folheiam as páginas da (sua) revista Playboy que passa de mão em mão.

Quando finalmente se senta à mesa, ocupa seu posto de rainha. Mesmo calada é quem preside o falatório. Aguarda o momento certeiro pra soltar o comentário mais malicioso, a piada que mais faz rir. Seu humor é ácido; diferente do meu avô, malandro aposentado, doce e bonachão, a cabeça toda branca e pura.

Apesar do clima de aparente abertura e diálogo franco, mesmo muitos anos (décadas) depois, nunca tive a coragem de fazer a pergunta que vira e mexe me vêm a cabeça desde que descobri o sexo:

Será que minhas avós conheceram o prazer? Gostavam da coisa ou davam apenas por obrigação?

Embora literatura e não pesquisa acadêmica nem documento oficial – e embora escrito por um homem – o livro “Dona Flor e seus dois maridos” me trouxe mais evidências pulgas atrás da orelha acerca da atemporalidade do desejo feminino. (Na verdade ponto provado e comprovado desde Eva: expulsa do Paraíso por comer do fruto proibido, descobrir o que é bom e querer ir por cima e cavalgar em Adão).

O livro, lançado em 1966, se passa na década de 40 em Salvador. Conta a história de Vadinho, um malandro que morre no carnaval vestido de baiana, com a mandioca que bulia com as moças pendendo da saia de rendas.

Vadinho era marido de Dona Flor, bon-vivant viciado em jogo, que fazia a mulher subir pelas paredes enquanto namoravam, mas que a traía feito o diabo e que chegou a bater nela num dia que ela não quis lhe arrumar dinheiro para as roletas e o carteado.

Ao contrário de Vadinho, que eu saiba meu avô nunca bateu na minha avó, mas também ele era chegado no jogo. Quando nasci jogou no bicho e ganhou uma bolada, o que levo até hoje como um sinal da minha boa estrela.

Como o personagem do livro, meu avô também era um malandro e traía minha avó bastante. Mas como tinha um coração do tamanho do mundo, fazia amizade com tudo quanto era gente, de tudo quanto era idade e classe social, hoje em dia é tido como santo.

Voltando ao livro, quando Vadinho morre Dona Flor amarga um luto danado. Sente falta demais daquele homem que lhe fazia tão mal mas que lhe comia tão bem, e a quem ela amava tanto.

Vivi essa dualidade na pele. Um relacionamento abusivo que embora me matasse por dentro, não conseguia largar nem por reza – mesmo com tudo quanto é tipo de reza e trabalho espiritual, na verdade. Como é possível amar tanto um homem que nos dilacera? Coisa feita, apego… Tema universal.

Vadinho e Dona Flor interpretados por José Wilker e Sônia Braga na adaptação do livro para o cinema.

Bom, depois de um ano de luto, Dona Flor mulher direita não se aguenta mais de tanto desejo e saudade do falecido. Quer “estrovenga” (como o autor chama pau) de todas as formas. Sonha com isso toda noite, não dorme.

Pra matar o desejo que lhe domina e não poluir sua imagem de viúva direita, Dona Flor de novo noiva, dessa vez de homem fiel, correto e metódico – o farmacêutico Dr. Teodoro. Em tudo o exato oposto de Vadinho, inclusive na cama.

Se dos castelos prostíbulos às mulheres de família, Vadinho satisfazia (e bem) metade das mulheres da Bahia; Teodoro só se prestava aos direitos e deveres da cama duas vezes por semana, com horário marcado às quartas e aos sábados, e com lençol por cima tampando tudo.

Embora as vizinhas lhe felicitassem a sorte grande – afinal homem mais direito no mundo não havia – Dona Flor, mulher de Oxum, acostumada a vadiar no mel e no dendê, não estava por completo satisfeita.

A saudade de Vadinho se tornou tão grande que permitiu o impossível, trouxe o finado de volta, rompendo inclusive o trabalho que o negro Didi havia feito na ocasião do enterro para manter longe o egum.

Egum (do iorubá egun) é o nome que nas religiões de matriz africana se dá à alma ou espírito de pessoa falecida, iniciada ou não.

Isso é outro ponto interessante sobre “Dona Flor e seus dois maridos” (assim como de vários outros livros do autor): Você não precisa necessariamente ser do candomblé ou conhecer os termos, orixás e mitologias para entender o enredo…

Mas se você tem um entendimento mínimo do assunto, a história ganha uma outra dimensão e sabor.

Aí você vê o esmero do autor (esse paladino do realismo mágico baiano!) na construção dos personagens e acontecimentos. A doce e dengosa Dona Flor, pele macia cor de cobre, ancas redondas, cozinheira de mão cheia… filha de Oxum. O metódico Teodoro, filho de Oxalá. Vadinho, seu oposto, Exu na Terra.

Laroyê!

Sendo brasileiro, não importa muito se você conhece ou não conhece os orixás e seus mistérios. Tendo sido nascido e criado nessa terra, mesmo mais de 50 anos depois do lançamento do livro, você continuará achando muito com o que se identificar, chorar e dar risada com a trama.

Se trata de uma história essencialmente brasileira, que revela os traços e as contradições de nossa gente, nosso conservadorismo e nosso desejo ardente, nossas dores e delícias, vícios e virtudes.

Agora como traduzir toda essa experiência, toda nossa malandragem, cultura e comidas típicas para estrangeiras outras línguas? Como traduzir o azeite de dendê, o acarajé, o céu da ilha de Itaparica, o dengo, o xodó?

Não se traduz, simples assim.

Pelo menos os tradutores de “Dona Flor and her two husbands” não tiveram muito sucesso. Apesar da nota do livro no Goodreads (uma rede social só de livros) ser bem alta, pelo que vi da resenha dos gringos, inclusive de gringos que leram o livro em inglês e depois em português, as traduções estrangeiras deixam de fora grande parte das nossas particulares culturais.. intraduzíveis.

Sem acesso ao tempero da língua, os gringos mastigam unicamente o que conseguem digerir com seus estômagos frágeis, alérgicos à dendê. A maioria deles diz gostar do livro, mesmo sem na minha opinião entenderem a metade. Outros criticam, dizendo que se trata de um lugar-comum, um clichê latino-americano.

Bom, quando o livro foi lançado, em 1966, minha avó, a que eu contei a história lá em cima, tinha então 34 anos. Já devia ser mãe de uns 6 ou 7. Se hoje em dia o livro é clichê latino, na época com certeza ousava em explorar tabus: a magia afro-brasileira, o desejo e o prazer feminino.

De qualquer forma, sendo ou não estereotipado, que falta eu sinto desse Brasil clichê, tão familiar! Um clichê capaz de trazer à luz minha própria história.

Se saia, Bolsonaro; Se saia, coronavírus! O brasileiro quer viver seus mistérios e contradições. E quanto à mim, ter a liberdade de encontrar minha avó, e fazer a fatídica pergunta: “então, vó, quando a senhora era jovem, gostava ou não de vadiar?”

Frame do filme homônimo dirigido por Bruno Barreto em 76′.

Sobre as fotos desse texto:
1) Foto de capa – Sônia Braga na Playboy de setembro de 1984.
2 e 3) Jorge Amado escrevendo e descansando.
4, 6 e 7) Pinturas de Hector Carybé.

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