Há exatos dois anos eu gravava uma cena psicodélica para o meu primeiro filme, “Ser Imaginário“.
A locação era uma pedreira na periferia de Belo Horizonte. Num fim de tarde de luz dourada, sob letras garrafais onde se liam “JESUS CRISTO”, e uma bandeira rústica que dizia “Senhor, agradeço a justiça feita e os irmãos que oraram”, três atores semi-nus com máscaras coloridas performavam um ritual de batismo.
Tanto os evangélicos que estavam no local pra orar quanto os jovens que aproveitavam da vista pra fumar maconha acharam a cena estranha, mas felizmente ninguém se opôs ou falou nada.
No trânsito da volta para o centro da cidade, eu me sentia satisfeita. O dia tinha sido produtivo e passado sem maiores atritos com o diretor de fotografia, o que já era motivo de sobra pra comemorar.
Depois de descarregar no muque os equipamentos emprestados, quando cheguei em casa postei no Instagram uma foto dos bastidores com uma legenda clichê: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça. we’re fuckin making movies“.
Quando o Instagram me trouxe essa memória essa semana confesso que senti um gosto meio ocre na boca. Fazem dois anos, e eu ainda nem comecei a editar. Quer dizer, separei o material, joguei no Première, assisti a algumas entrevistas. E ficou por isso.
Tá que meu computador é mesmo uma carroça, mas quem quer dá um jeito. No fundo eu sei que não foi (só) por isso que eu ainda não comecei.
Foi o medo, eu acho. Montar um filme dá muito mais trabalho que montar um clipe, e se eu já demoro meses pra soltar um clipe, quando é que vou conseguir finalizar um longa, ou um média, um curta (essa é sempre a primeira pergunta que me fazem quando eu falo que estou fazendo um filme, e eu sempre respondo “não sei, vamos ver o que vai dar”).
Além disso, e sem desculpas esfarrapadas, me faltava tempo. Não que eu tivesse filhos, ou um emprego fixo. Emprego fixo, aliás, é uma coisa que eu não tenho há anos.
O último durou três meses. Foi como redatora numa agência de publicidade. Sentia meu ânimo de vida se escorrer pelos dedos enquanto encontrava sinônimos para “dobradiça com deslizamento suave” para os panfletos de cozinhas pré-fabricadas que eu tinha de produzir. Aquilo estava me matando por dentro.
Arrumei um freela fixo de marketing digital numa loja granfina de flores falsas, e meti o pé. Fiquei na agência tempo suficiente para pagar umas dívidas. Do salário que recebi em três meses de trabalho, me sobraram mil reais: investi tudo no filme.
Naquela época eu me dividia entre tocar como DJ, produzir festas, escrever num blog autoral sobre amor e sexo e produzir clipes com equipe reduzidíssima, o que na prática significa um acúmulo imenso de funções.
Entrei na agência na tentativa de estabilizar minha vida profissional e financeira. Tava cansada da noite, das incertezas da produção de eventos, uma espécie de prostituição que por mais que a gente fale “nunca mais” sempre acaba voltando. Acho que é a adrenalina, vicia.
Essa história de clipes começou pela influência do meu namorado da época, o primeiro diretor de fotografia do filme.
Como eu gostava de escrever, pra ajudar ele fui criando roteiros e quando vi tava dirigindo clipes. Me empolguei na ideia e comecei a escrever roteiros pra filmes e programas de TV.
Em março de 2018 gravei uma entrevista em formato super experimental com um dos maiores nomes do rap nacional. Essa entrevista me deu vontade de expandir o formato, e que a pessoa não só contasse sobre sua vida, mas que a gente mostrasse de fato ela vivendo.
Foi assim que surgiu a ideia do filme do “Ser Imaginário”, um casal de jovem artistas (sobre)vivendo no capitalismo. Como fazem? O que comem? Onde dormem? Como se reproduzem? Mais ou menos essa onda.
Tanto a entrevista do rapper, quanto o material bruto do filme seguem mofando nos meus HDs.
Continuo tendo ideias de novos projetos, novos roteiros, coisas mirabolantes… Mas meu censor interno se soma aos fantasmas dos projetos não concluídos no bombardeio de frases que corroem a auto-estima como uma panela de ácido quente. Eu preciso terminar o que eu comecei.
Projetos não concluídos apodrecem dentro da gente. Criatividade não aproveitada vira raiva e frustração.
Não é possível ser produtora de eventos, DJ, escritora, terapeuta holístca, roteirista, produtora de audiovisual, diretora, editora, finalizadora, fazer freelas e ser viciada em redes sociais – tudo ao mesmo tempo.
Quer dizer, às vezes pra alguém dá, mas pra mim não funciona. Essa foi a principal lição que aprendi nos meus 30 anos.
Depois de muito tomar no cu, larguei mão de muitos dos projetos. Me aposentei de vez da produção de eventos, vendi a controladora de DJ. Não sei se vou continuar no audiovisual, talvez como roteirista, mas sei que tenho o dever moral de terminar esse filme.
Quero investir na escrita. Pra retomar a frequência, criei esse site. Entre outras coisas, vou registrar aqui o processo de edição do filme, criando uma espécie de compromisso público pra dar forças de não desistir.
A escrita pra mim é curativa: exorciza demônios e (espero) fantasmas de projetos não concluídos.