Certa vez me aconteceu uma coisa curiosa, eu não lembro se foi da primeira vez que tomei ayahuasca, mas foi depois de uma sessão. Voltei pra casa cheia de insights, os sentidos bem acesos, ainda meio alta de tudo que eu tinha visto e vivido. Cheguei em casa, tomei um banho relaxante, me deitei.
Já era tarde da noite, mas eu continuava acesa, não conseguia dormir. Algo me doía a barriga. Sentei no vaso. Nada. Dez, quinze, vinte minutos. Nada. Apertava o peito contra os joelhos, sentia pontadas, me contorcia. Nada.
Depois de muitas idas e vindas da cama pra privada, da privada pra cama, me rendi à escrivaninha; algo me puxava. Com letras grandes, escritas à giz de cera, enchi dezenas de páginas. Um fluxo tremendo.
Provavelmente ainda sob influência do chá, vi em minha tela mental a imagem de uma grande rede de escritores – Cecília Meirelles aparecia, o que não deixava de ser curioso pois racionalmente nunca fui muito ligada à ela; Drummond e não lembro exatamente quais outros nomes e rostos. Unidos entre si por pequenos pontinhos de luz, me davam a benção e me convidavam para juntar-me à teia.
Escrevi tudo que tinha pra escrever, numa literatura muito minha, metida à reza. Voltei pro vaso. Saiu tudo, um alívio tremendo, dormi feliz.
Ainda que aditivado por plantas de poder, dez anos mais tarde esse episódio ainda representa bem o que escrever significa pra mim: um parto, uma prisão de ventre. Dói, incomoda, arranha, arde. E por outro lado é o que eu mais amo fazer na vida. Vai entender.
É contraditório porquê se às vezes a escrita se apresenta como uma coisa dolorosa – essa semana me veio à cabeça a imagem de que escrever é como passar o coração (um pedaço de carne sangrento, vivo e pulsante) num ralador – por outras vezes a sensação é justamente o oposto.
Peco ora pela seca, ora pela enchente. Quando começo não consigo parar. A imagem que aparece então é outra: uma torneira simples, aberta em fluxo, capaz de encher um balde amarelo, e mais outro, e mais outro. Um espelho d’água a transbordar.
Me lembrei agora da vez me encantei por um rapaz muito bonito, cinéfilo, amava ler e cozinhar, não tinha redes sociais (mais um ponto positivo), mas se dizia satanista 🙄 e conclamava “odiar metáforas”.
Logo se vê porquê não nos demos bem. Não por suas opções espirituais (seu “satanismo” era mais um repúdio às instituições religiosas do que uma adoração à Satã em si), mas por odiar metáforas.
Falo isso porque me veio outra imagem na cabeça que sintetiza tudo, a dor e a delícia do criar: É como se escrever fosse pra mim como caminhar por uma bela praia, cujo mar quente e calmo me convida para mergulhos dos quais eu não quero sair nunca.
Mas pra chegar nessa praia, nesse estado de fruição e fluxo, eu tenho que passar pela floresta mais escura e pantanosa e cheia de espinhos e animais assustadores que você possa imaginar.
Ali se encontram reunidas a voz de todos meus pavores: uma solidão profunda, um constante sentimento de desajuste do mundo, uma auto-estima pífia em todas as áreas da vida, um medo tremendo do julgamento dos outros.
Superado isso, é (quase que) um deleite só, risos.
Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.
– Frida Kahlo
Bestial e divina,
A escrita me revela e por isso tenho tanto medo dela. Fico pensando que os primeiros parágrafos desse texto – eu falando de cocô, de alguma forma comparando minha escrita à merda, ou pior ainda, o fato de em algum momento me achar digna da benção de um grande escritor – possam ter te incomodado.
Aí me lembro do primeiro capítulo de um dos livros que comecei a escrever e larguei pra lá. A protagonista lavando o cu no banho e pensando na possibilidade do sexo lhe estourar os pêlos pubianos. Acho que ela ainda refletia, debochada, que “a escatologia é domínio dos homens. Bataille, Miller, Bukowski. Eles estão autorizados, nós não.”
Bom, são pelo menos três projetos de livros, com propostas bem diferentes entre si. Nenhum foi adiante. A ideia vem, estruturo, escrevo alguns capítulos e não dou continuidade. Como falei, dói criar e dói mais ainda não criar e ter que conviver com o que apodrece dentro.
Não sei elencar ao certo todos os fatores que me paralizam, mas um bem óbvio é que eu morro de medo da crítica. Morro de medo de me mostrar como sou.
Uma personagem com tantas camadas, ora beata, ora completamente bestial e escatológica. Sou tantas. Como me analisariam? E se se voltassem contra mim? Eu saberia lidar com o desprezo e a rejeição massiva do público e crítica?
Sinto que escrever é me expôr tanto, que me dói menos, muito menos, publicar uma foto pelada no Instagram. Minha nudez física é pouco perto do pudor que sinto de revelar o que carrego no coração.
De qualquer forma, e apesar do medo, estou editando meu primeiro filme e me propondo a manter esse site como um exercício de escrita diário. Por enquanto, esses primeiros textos me parecem ser apenas úlcera, chorume, pus – o substrato de feridas que ainda não cicatrizaram.
“Unexpressed emotions will never die. They are buried alive and will come forth later in uglier ways.”
“Emoções que não expressadas não morrem nunca. Elas são enterradas vivas e depois vem à tona das maneiras mais feias.”
— Sigmund Freud
Fico me questionando se chegará a hora em que terei algo a dizer de fato por aqui, ou se ficarei apenas raspando o mofo daquilo que tentei enterrar molhado e vivo em uma caixa e tratei de manter o mais distante do mundo o possível.
Mas… respeito o tempo e meus processos. Retomar o movimento criativo depois de tanto tempo (e apesar de todos os medos) é um dia caminhar no sétimo céu e no outro dia sobre as brasas do inferno. Sigo, apesar de tudo, criando asas e cascas nos pés.