Malcolm X, além do bem e do mal

Reflexões sobre o revolucionário a partir do filme de Spike Lee

Com 2,3 milhões de presos, os Estados Unidos tem a maior população carcerária do mundo. Os negros representam 34% da população prisional, contra 29% de brancos e 24% de latinos.

Se num primeiro momento esses números podem aparentar estar mais ou menos equilibrados, a disparidade reside no fato dos negros representarem apenas 13% da população americana.

A cada 100.000 pessoas negras, 2306 estão presas. Entre os brancos, a cada 100.000 pessoas, são 450 atrás das grades, ou seja, a probabilidade de uma pessoa negra ser presa é mais de 5 vezes maior que uma branca.

De acordo com Michelle Alexander, socióloga da Universidade de Ohio, há mais negros na prisões americanas atualmente do que escravos nos EUA em 1850. Pesquisas indicam que um homem negro que não concluiu os estudos tem mais chances de ir para prisão do que conseguir uma vaga no mercado de trabalho.

No Brasil, a realidade não é muito diferente, exceto que aqui os negros são 54% da população.

O encarceramento tem cor

Citando Bretch, “Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”

No Brasil, o terceiro país que mais prende pessoas no mundo, são quase 800 mil presos, dos quais 63,7% são negros.

Quantos possíveis líderes, gênios, advogados, cientistas não estão enterrados vivos atrás das grades?

Esse foi o principal questionamento que ficou me rondando a cabeça depois de assistir o filme “Malcolm X” (1992), dirigido por Spike Lee.

Quando você pensa em um líder humanitário, pelo preconceito senso comum, você até imagina que ele já possa ter ido preso por sua resistência política, mas não pelo cometimento de crimes comuns.

Assim, quando assisti o filme de Spike Lee, eu não sabia nada sobre o passado de roubos, venda de drogas, envolvimento com prostituição e jogos de azar de Malcolm X, interpretado no filme pelo ator Denzel Washington.

Na verdade, conhecia o revolucionário apenas pelo senso comum: a citação de suas ideias em filmes e letras de rap, muitas fotos icônicas – ora armado com um fuzil próximo a uma janela, ora acompanhado por outros ícones negros e líderes humanitários, ora sozinho ajoelhado sobre tapetes em uma mesquita em atitude de oração, o que me revelava sua ligação com o Islã.





Já tinha assistido um ou outro trecho de entrevistas suas que circulam na internet, e por elas sabia que ele era mais radical em sua visão racial, se comparado por exemplo à Martin Luther King Jr.

Se frente as leis da segregação King buscava a integração de brancos e negros, nos discursos que eu já tinha visto de X, o pensador via a união das raças como algo improvável, impossível e inclusive desaconselhável.

Cabia ao negro, e unicamente ao negro, emancipar e gerir sua comunidade em todos os âmbitos possíveis. Para conquistar essa liberdade, X acreditava no uso dos meios que fossem necessários, incluindo aí a auto-defesa armada, o que contrastava com a visão mais pacifista de Luther King.

Quando acatei a indicação de um amigo de assistir o filme “Malcolm X” (1992) era basicamente isso que eu sabia sobre esse revolucionário, ou seja, praticamente nada.

Vou fazer um resumo da história do filme pra quem se interessar. Se você já assistiu, se quiser pode pular essa parte e nos encontraremos mais adiante.

“Gente que acredito, gosto e admiro, brigava por justiça e paz, levou tiro”

O filme começa em Boston, com Malcolm Little jovem. Por influência de seu amigo Shorty (interpretado pelo próprio Spike Lee), Malcolm, passa a alisar os cabelos, frequentar a boêmia.

Alguns flashbacks nos levam a sua infância, no Estado de Nebraska. Conhecemos sua mãe, uma mulher de pele clara, e seu pai, um negro retinto, pastor de igreja que segundo o filme era bem ativo na luta pelo povo preto. Assistimos os ataques que a família de Malcolm sofreu por parte da Ku Klux Klan e também a morte de seu pai, depois da qual sua mãe enfrenta muita dificuldade de arrumar emprego e sustentar a família.

É nessa época, ainda criança, que Malcolm comete seus primeiros delitos: roubo de comida. Malcolm acaba sendo levado pela assistência social e logo após adotado por uma família branca. Apesar de ser o melhor aluno da classe, seu professor desencoraja seu sonho de ser advogado e o incentiva a seguir suas habilidades “inatas” e se tornar algo mais próprio a pessoas de sua cor: um carpinteiro.

Em Boston, o jovem boêmio Malcolm, que a princípio trabalhava como garçom em uma linha ferroviária, passa a praticar pequenos delitos que crescem progressivamente de peso e perigo. Venda de drogas, ligação com prostituição, jogos de azar. Troca Laura, uma namorada negra, por Sophia, uma loira que também se torna sua parceira de crime.

Shorty também tem uma namorada loira. Formam uma espécie de gang. Sophia e a namorada de Shorty são pegas em um dos assaltos e Shorty e Malcolm acabam presos, não pelo assalto em si, mas pelo envolvimento com mulheres brancas (segundo o filme, na vida real não foi bem assim).

Estamos falando de 1946, Malcolm Little tinha então 21 anos e é condenado a 10 anos de prisão. Na prisão, conhece Baines, que questiona o fato de Malcolm alisar o cabelo, renegar a si mesmo na busca por traços brancos, e lhe apresenta a história africana e o Islamismo através da visão de Elijah Muhammad. Para marcar sua recusa com seu passado colonizado, Malcolm troca então o Little por X.

Na prisão, Malcolm X usa o tempo que tem pra ler de absolutamente tudo. Estuda profundamente a história africana e lê o dicionário branco de cabo à rabo, a bíblia, os escritos islâmicos. Quando sai da prisão, é acolhido pelo próprio Elijah Muhammad, vira pregador na Nação do Islã e por seu poder intelectual e de oratória, logo cresce muito.

Defendia então ideias que chocavam os Estados Unidos, então divididos por leis que segregavam completamente os negros dos brancos. Ao invés de pregar o integracionismo, ou seja, o fim dessas barreiras, Malcolm X defendia então a união do povo preto contra o “demônio branco de olhos azuis”, a emancipação financeira das comunidades negras, e daí por diante.

Defendia que o povo preto deveria alcançar a “liberdade por quaisquer meios necessários”, o que não excluía o uso de armas, uma vez que os brancos continuavam armados (e matando os negros).

Bom suas ideias geravam bastante polêmica e alcançaram bastante visibilidade, o que acaba incomodando as estruturas internas da Nação do Islam, o grupo que existia sobre a égide de Elijah Muhammad.

Elijah Muhammad e Malcolm X

Bom, depois de algumas declarações polêmicas sobre o assassinato de Kenedy, assim como a descoberta de esquemas de corrupção e atitudes não tão admiráveis do seu líder, Malcolm é paulatinamente silenciado do grupo até que é finalmente expulso.

Depois de sair da Nação do Islam, Malcolm funda a Muslim Mosque, Inc. e a OAAU (Organization of Afro-american Unity) e passa a defender ideias próprias, não mais vinculadas a Muhammad.

A visibilidade que tem o faz ser observado de perto pela CIA e pelo FBI assim como receber diariamente ligações com ameaças e inclusive atentados à casa em que morava com sua família.

Em 1964, cumprindo com a sua obrigação enquanto muçulmano, faz uma peregrinação à Meca. Ali percebe que o Islã é composto por pessoas de todas as cores e então, um ano antes de sua morte, desenvolve uma nova percepção racial, que o aproxima a líderes que antes ele criticava, como Martin Luther King.

Voltando aos Estados Unidos, continua seu trabalho político, trazendo suas novas percepções, mas ainda assim é assassinado um ano mais tarde, em 1965 durante um discurso frente a um auditório lotado em que sua família estava na primeira fila.

Percepções sobre o filme

Ficção x realidade

Assim como Tarantino, Spike Lee é um diretor que gosta de aparecer/atuar em seus próprios filmes. Ele é um dos namorados de Nola Darling em “She’s gotta have it”, e um dos protagonistas do seu excelente “Do the right thing”.

Em “Malcolm X” interpreta Shorty, um dos melhores amigos de Malcolm na juventude. Imagino que deve ter sido a realização de um sonho do diretor/ator atuar ao lado do personagem que representa um dos seus ídolos da vida real.

Bom, uma das primeiras perguntas que me veio logo no começo do filme é: “Quanto disso aqui é real? Quanto disso tem lastro nos fatos históricos?” Não é fácil adaptar a vida de um homem dessa magnitude para o cinema, mas ao mesmo tempo imagino que Lee também tinha uma responsabilidade grande ao contar essa história.

Pesquisando depois, li alguns textos sobre o que é apresentado no filme que bate com a realidade e o que é ficcionalização. Se liga aqui e aqui.

Com quantos Malcolm’s se faz um Malcolm X?

Em uma das primeiras frases do filme Malcolm fala em off sobre o desejo do homem negro de possuir a mulher branca, uma espécie de vingança ou desejo de reparação inconsciente pelos estupros que o homem branco cometeu contra a mulher negra.

Se o Malcolm pré-prisão, o Malcolm Little, malandro das ruas, trocou uma namorada negra por uma loira, que se tornou sua parceira de crime, depois de se converter à Nação do Islam ele passa a rejeitar todos os vícios brancos: o álcool, as drogas, o ato de comer porco, suas mulheres.

Para resgatar seus irmãos, Malcolm não só pregava espiritual e politicamente, como liderou marchas, desenvolveu programas de combate à prostituição, as drogas e recuperação de viciados. Na época que esteve na Nação do Islã, e em cujos discursos afirmava reproduzir os ensinamentos de Elijah Muhammad, ele assume uma visão política mais radical e não integracionista.

Uma cena bem marcante é um dia que ele vai palestrar numa Universidade e uma mulher loira o interpela falando que o admira muito, que não é malvada como seus ancestrais e pergunta o que pode fazer para ajudar a causa. Malcolm dá de ombros e responde um seco “Nada“.

Depois de ser traído por Elijah Muhammad e se afastar da Nação do Islam, Malcolm faz uma longa viagem à pela África e pelo Oriente Médio. Em Meca, comunga com muçulmanos de todas as raças e desenvolve uma nova percepção racial. Abandona o separatismo. Isso ocorre um ano antes dele ser assassinado, aos 39 anos.

Adota uma visão pan-africanista e no discurso de sua nova organização OOAU admite a participação de brancos no movimento como doadores de recursos, mas não como membros do movimento. Reforça algumas ideias, mas outras mudam e se suavizam.

Bom, pessoalmente não acredito que ele tenha desenvolvido uma súbita simpatia aos brancos, e não é sobre isso que se trata. Mas uma das coisas mais legais do filme, na minha opinião, é ver que a construção e a depuração de uma personalidade e de um pensamento de um homem que foi um revolucionário, um líder.

“O senhor… mire e veja, o mais importante e bonito, do mundo, e isto: as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam – verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra de montão.” G. Rosa

Luther King, o bonzinho, e Malcolm X, o malvado?

É fundamental desfazer as ideias de bem e mal com que se pintam os líderes políticos e revolucionários, e encará-los como são: seres humanos, com vícios e virtudes, acertos e erros na caminhada, compostos por laços de lealdade mas também sujeitos à traição.

Se abrir a escutar Malcolm X é fundamental para desfazermos a imagem que se construiu dele, como se este fosse um grande terrorista em contraponto a King Jr, um exemplo de um “verdadeiro bom militante”.

Quadro 1: Multidão diz “Vocês não cabem aqui”
Quadro 2: Os excluídos dizem: “Ok, nós vamos construir nosso próprio espaço”
Quadro 3: A multidão replica: “Por quê vocês estão nos excluindo?”

Muito do que ele fala nessa entrevista de 1963 continua sendo verdade hoje em 2020 – lembrando que essa entrevista antecede a sua peregrinação à Meca, e que depois dela alguns de seus pontos de vista se flexibilizam um pouco.

À Dimas, o primeiro

Simbologia

O aluno mais brilhante da sala, com as melhores notas, mas cuja vida enquanto pessoa negra em uma sociedade extremamente racista lhe negou família estruturada, pão, casa, oportunidade, sonhos.

Malcolm Little se desenvolveu então como um fruto de seu meio, se envolveu no crime, mas na prisão teve a oportunidade de se educar em temas que antes lhe tinham sido ocultos e basicamente renasceu.

O que faz pensar… frente a exclusão, exploração, falta de direitos e oportunidades, encarceramento em massa e genocídio, não seria todo negro encarcerado um preso político?

O que pode um homem que se educa? Quantos grandes líderes não são privados de trazer o seu poder pro mundo pela alienação completa do seus direitos básicos, incluindo aí a educação?

Diário de um detento, Racionais MC’s

O filme traz algumas alusões ao Cristianismo (inclusive uma cena marcante em que Malcolm discute com um padre na prisão sobre a cor de Jesus) e ao ver a sua transformação, me lembrei muito de Dimas, o bom ladrão que foi crucificado ao lado de Cristo.

É como se Dimas ao invés de ser morto antes de Jesus, tivesse tido a chance de descer da cruz e com um novo conhecimento de mundo, pregar a sua verdade e fazer uma revolução.

Já pregador da Nação do Islam, Malcolm procura seus ex-colegas de crime. E um dia Shorty (Spike Lee) vai à igreja (mesquita?) onde ele estava pregando. Ao vê-lo Malcolm se emociona e lhe apresenta como um antigo companheiro de prisão para a plateia que o escuta. Alguns se espantam, como quem diz “então nosso orador já foi preso”? Malcolm responde: “Eu fui preso, mas muitos de vocês continuam em suas prisões mentais.”

Influência no rap

Não é atoa que Malcolm X influenciou tanto o hiphop. No clipe de “Oitavo anjo” do grupo de rap 509-E vemos Dexter lendo a autobiografia de Malcolm X. O nome do grupo, composto por Dexter e Afro-X, seu colega de cela, aludia ao número da cela que dividiram por anos.

Aliás, sobre a importância de Malcolm X para o rap nacional tem um texto excelente da Noisey: se liga aqui.

“Precisamos de um líder de crédito popular como Malcom X em outros tempos foi na América, que seja negro até os ossos, um dos nossos e reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços”

Voz Ativa – Racionais MCs

As ideias de Malcolm X seguem vivas

Assistindo o filme, ouvindo as palavras de sua boca, lendo seus escritos, somos capazes de compreender um pouco melhor o seu ponto de vista.. e assim ampliar nossa compreensão inclusive o posicionamento de grupos mais radicais do movimento negro contemporâneo, respeitando integralmente suas escolhas e atuação política.

Conhecer a biografia e as ideias desse grande pensador é entender muito sobre o passado, o presente e o futuro dos países marcados pela diáspora compulsória e escravidão.

Acredito que é importante inclusive pessoas brancas conhecerem Malcolm X, não para achar que você fará parte do movimento negro (Malcolm se reviraria no caixão frente essa possibilidade), mas antes, para compreender a influência e capilaridade das suas ideias ainda hoje em dia e respeitar o protagonismo, a existência de espaços exclusivos, e por outro lado se esforçar do lugar que te cabe a promover a ocupação real de pessoas negras em cargos de poder.

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