Eu tinha um certo medo do Bergman, como tenho – por exemplo – do Akira Kurosawa, diretor japonês que eu sei que é genial, mas que ainda tenho um certo receio de assistir seus filmes e ter preguiça, achar chato.
Mas o Bergman era um cineasta que eu sabia que mais dia e menos dia eu ia acabar tendo coragem de mergulhar na obra, e o filme que escolhi para iniciar esse “namoro” (na minha cabeça infantil eu tenho amizades e relacionamentos com os artistas que eu gosto) foi Persona.
Esse primeiro date aconteceu no começo de 2020, um ano, como se sabe, marcado pelo caos e pela pandemia do coronavírus. Meu isolamento social, entretanto, começara antes… bem antes.
Eu já trabalhava de casa há pelo menos cinco anos, e conhecia intimamente a dor e a delícia do home office. Na proximidade de completar 30 anos fui abatida pela famigerada crise do retorno de Saturno, e eu entrei ainda mais pra dentro de mim para reavaliar os caminhos pelos quais estava levando minha vida, minha carreira e meus relacionamentos.
E assim me afastei ainda mais do mundo. Como a atriz do filme de Persona, mesmo antes do lock-down, eu me fiz de muda e me tranquei dentro de mim.
A sensação que tive ao assistir Persona foi de levar um tiro no crânio. Fiquei pensando nesse filme por 3 dias (sem exagero) e me empolguei de assistir mais filmes do diretor.
Em seguida assisti O sétimo selo, um filme em que a morte passeia pelo campo da Europa Medieval e ao ir buscar um cavaleiro, esse o desafia para uma partida de xadrez. Se ele vencer o jogo, ganha os direitos sobre a sua vida. Se perder, a morte o leva.
O jogo dura dias.. e o cavaleiro se soma em comitiva à uma família de artistas. O filme reflete sobre a religião, a sociedade, a vida, a morte e a arte. É poético e lúdico, e embora reflexivo, é beem mais leve que Persona.
Fiquei muito feliz em perceber uma referência ao filme na capa do disco “No princípio era o verbo – Babylon by Gus Vol. II” do rapper (e cinéfilo) Black Alien. Também Black Alien tentava usar da arte uma estratégia para escapar da morte enquanto lutava com o vício em cocaína e todos os seus demônios internos. Acho que é sobre isso que a capa fala.
Mesmo sem conhecer muito a história do diretor uma coisa que fica bem óbvia ao assistir seus filmes recheados de questões existenciais, filosóficas e psicológicas é que ele traz muito de si, seus dramas e questões para sua obra.
O terceiro filme foi Morangos Silvestres, que conta a história de um senhor de idade, patriarca manipulador revisitando a casa onde passou sua infância e juventude, a traição que sofreu do seu irmão… coloca uma pulga atrás da orelha do espectador sobre as próprias relações do diretor com o pai.
Depois de um intervalo de alguns meses em que a situação dramática em que o Brasil chafurdava me fez buscar filmes mais leves (como por exemplo Billy Wilder, um clássico hollywoodiano que eu amo) voltei ao sueco.
No meio tempo de ter me apaixonado por seus filmes, principalmente por Persona, embora Morangos Silvestres tenha me feito chorar igual uma criancinha.. Fui procurar mais sobre sua vida. E mais uma vez cheguei à conclusão de que…
Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem
Pesquisando por alto, vi que existe um filme sobre a vida dele dirigido por uma outra pessoa, em que retrata um diretor bem babaca.. (Assim como também existem histórias que Godard e Hitchcock eram simplesmente intragáveis tanto no set como em suas vidas pessoais.)
Com alguns artistas do século passado, eu consigo separar vida e obra. Com outros não. Picasso por exemplo. Sempre o achei genial, até descobrir o quanto ele era um monstro misógino com todas as mulheres de sua vida. Desde então não vejo a mesma graça em suas fotos de cueca na praia.
Se por um lado eu entendo que a sensibilidade de um artista pra vida é maior.. e que talento não significa caráter, teve algo que li que me deixou ainda mais assustada do que a grosseria de Bergman no set: o fato de que por algum tempo em sua juventude o cineasta flertou com o fascismo.
Não tive coragem de pesquisar isso à fundo ainda porquê realmente não queria me decepcionar com esse artista tão sensível, cuja obra me toca toca tão profundamente.
Soube que ele fala sobre esse flerte com o fascismo no filme Fanny e Alexander, e ia ser meu próximo filme dele, mas acabei assistindo Sonata de Outono… por motivos de: tem legendado no Youtube.
Mais uma vez temos um drama familiar (assim como Morangos Silvestres). Se lá era um patriarca manipulador, aqui é uma mãe narcísica. Uma pianista renomada que abandona sua família, incluindo aí uma filha com doença degenerativa, para seguir a sua carreira.. o que deixa uma ferida muito profunda em suas descendentes.
Recomendei o filme pra minha mãe, que falou que lembra de t*ê-*lo visto no cinema na data no seu lançamento, em 1978, ela então com 17 anos. E que saiu da sessão impressionadíssima ao ver nas telas retratada a dificuldade de relacionamento que possuía (e ainda possui, ainda que abrandada) com a própria mãe.
Me revelou ainda que segundo as coisas que ela estuda (minha mãe é psicóloga e consteladora familiar) o desejo pelo auto-conhecimento é herdado da mãe e da nossa linhagem matrilinear, e que a mãe dela, por mais defeitos que tivesse, sempre foi uma pessoa que leu muito e assistiu muitos filmes… e que inclusive amava Bergman.
E assim, termino minha manhã, feliz da vida, ainda em isolamento social, depois de uma ligação de mais de 40 minutos com minha avó de 90 anos, completamente lúcida, sobre Bergman e cinema de autor.
Antes de desligar a ligação, minha avó (cuja frieza é motivo de tantos traumas da minha mãe) explodiu em gritos dizendo o quanto me amava. Talvez sejam efeitos indiretos dos estudos mágicos de constelação familiar da minha mãe.. talvez seja simplesmente o tempo, a literatura e o cinema curando feridas geracionais profundas.
Afinal de contas, como coloca nosso polêmico diretor…