Os livros ficavam dispostos sobre uma grande mesa no centro da biblioteca. “O burrinho alpinista”, “Marcelo Marmelo Martelo”, “O bonequinho doce”. Na aula de literatura, parte das crianças se acotovelava para ver quem ia pegar os que a gente sabia que eram mais legais. Entre os mais disputados estavam os da série da “Bruxa Onilda” e “Quem Tem Medo de tralalá”.
Eu olhava a confusão meio de longe, como se não fosse comigo. Enquanto meus colegas escolhiam afobados os livros na mesa de centro, eu caminhava lentamente pelos cantos da biblioteca, não sem provavelmente ostentar algum ar de superioridade e mistério.
Nas estantes os livros eram divididos por série/faixa etária e eu me demorava em namorar as prateleiras dedicadas aos anos mais velhos. Minha assiduidade no empréstimo de livros havia me garantido um direito especial: em segredo Daniela e Cecília, as bibliotecárias, haviam me dado a licença de pegar livros das séries seguintes. Eu me sentia adulta e especial, e lia ainda mais.
Em casa não recebia o mesmo incentivo. Depois de muito pedir pra meu pai que me comprasse livros, ele finalmente atendeu, trazendo pra mim edições de “Senhora” e “O Guarani”, ambos de José de Alencar, os livros mais chatos que uma pessoa pode pensar em dar para uma criança.
Na minha primeira adolescência lembro que li “Verônica decide morrer”, do Paulo Coelho, e fiquei impressionadíssima; acho que li uns dois ou três livros dele na sequência.
Li também alguns Harry Potter’s, mas não todos, e lembro de alguns outros livros mais bobos, tipo livros de piada do Casseta e Planeta e “O diário de Tati”, de Heloísa Perisé, presente da minha mãe, que eu adorei, achei muito engraçado e li mais de uma vez inclusive.
Aos 16 anos eu tinha uma pequenina biblioteca, não lembro exatamente os títulos, mas ela se desfez de pouco em pouco. Clandestinamente eu ia ao centro vendê-los nos sebos pra ter algum dinheiro pra sair e beber. Se tivessem ficado sabendo, Daniela e Cecília, as bibliotecárias que tanto me incentivaram alguns anos antes, ficariam desapontadíssimas.
Na medida que escrevo vou lembrando outros livros que me marcaram. Nessa época eu gostava muito também de Carlos Castañeda; a “Erva do Diabo” foi o meu favorito. Mas então eu já lia muito pouco.
Eram os livros que mandavam como leituras obrigatórias no colégio e meio que só. Forcei a memória tentando rememorar alguns dos títulos. Lembrei só de “Tristão e Isolda”, que tenho quase certeza que não gostei. Talvez algum Fernando Sabino; e “Senhora”, do José de Alencar, de novo. Aquela chatice. 😰
Na verdade depois lembrei de “Anarquistas, graças a Deus”, da Zelia Gattai, e “O diário de Anne Frank”, li na escola e eu gostei muito dos dois.
Ainda assim, apesar de ler pouco, de alguma maneira inexplicável eu continuava amando as as aulas de literatura do colégio. Nunca vou me esquecer da Ludmila, minha professora do segundo ano, contando pra gente a história da “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, e eu com a cabeça enfiada no moletom, fingindo que dormia, mas na verdade chorava escondido, de tão bonito que achei.
As férias de verão eram tão longas que de tanto nada pra fazer eu acabava frequentando a biblioteca perto de casa. Ali além de quadrinhos, aprendi a gostar de Nelson Rodrigues. Lembro que ainda não tinha 18 anos quando li vários dele, um atrás do outro: “A vida como ela é”; “O beijo no asfalto”; “Vestido de Noiva”; “Bonitinha, mas ordinária”; e o meu favorito na época embora hoje em dia eu não lembre um A da história “Suzana Flag, o meu destino é pecar”.
Acho que eu tinha uma quedinha especial por escritores machistas, pois me apaixonei pelo odioso narrador de “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar.
Por essa época li meu primeiro Gabriel García Marquez, “O amor nos tempos do cólera”, e também uma edição velha e completamente mofada de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Amei a fina ironia de Machado de Assis com todo meu coração.
Bom, some aí umas séries do tipo “O diário de Brigitte Jones” e “Gossip Girls”, alguns livros best-sellers tipo “O xangô de Baker Street” de Jô Soares (hahaha) e “Por quê Nietzche chorou”, e era basicamente essa minha carga de leitura quando entrei na faculdade.
Aos 18 anos, egressa de escolas particulares cheia de grades, e com uma carga de leitura rasa em ficção e inexistente em filosofia, entrei no curso de Ciências Sociais.
No primeiro período a grade era Sociologia 1 (Marx, Durkheim e Weber), Antropologia 1 (nem lembro os nomes dos antropólogos, mas as primeiras escolas), Política 1 (com leituras clássicas), Introdução à Economia e Filosofia 1 (mal ia na aula, mas lembro de algumas sobre a Escola de Frankfurt).
Não é exagero dizer que os textos que eu imprimia no xerox pareciam grego pra mim. Além de não ler os textos, eu também mal ia nas aulas. Apesar de ter passado entre os primeiros colocados no vestibular, deslumbrada com a liberdade inédita que a Universidade me fornecia, me tornei uma péssima aluna.
Chegava sempre no prédio de Ciências Humanas atrasada e ao invés de ir pra sala de aula ia direto ou pra sinuca ou pro Milharal, como chamava um espaço onde fumávamos maconha.
Por mais que em um sentido tenha jogado no lixo meus primeiros anos na Universidade, por outro aprendi enormemente. Desenvolvi minhas habilidades de reflexão e argumentação. Mais nas rodas de baseado e nos centros acadêmicos, é verdade, mas o caráter não ortodoxo do método não altera o resultado.
Passei a conviver com gente que se interessava por política, arte, literatura, cinema. Pessoas que me apresentavam um mundo completamente novo… mas que de alguma forma se conectava com gostos que tive na infância e em parte da adolescência sobre os quais eu nunca tive com quem conversar a respeito.
Quando eu tinha 13 anos, comecei a pesquisar música obsessivamente e entrei numa onda de gostar de filmes violentos. “Eu, Cristiane F – 13 anos, drogada e prostituída”, Elephant, Dogville, Trainspotting, Kill Bill… Obriguei todas as minhas amigas a assistirem Laranja Mecânica, achava o máximo toda aquela ultra-violência – foi só re-assistindo aos 30 que percebi que Alex Drugue não é um cara tão legal assim.
Enfim, na faculdade encontrei pares que se interessavam pelas mesmas coisas que eu e a possibilidade de troca sobre esses assuntos, apesar da minhas óbvias lacunas de formação, me extasiavam.
Perdi a virgindade duas semanas depois de entrar na faculdade, com um menino que conheci na primeira festa do curso de ciências sociais. Eu já tinha tido namoricos antes, mas não me sentia pronta. Com ele foi diferente. Além da pressão interna por me sentir “velha demais pra ser virgem” (hahaha), eu o admirava.
Namoramos por três anos. Ele já tinha lido muitos mais livros do que eu, pesquisava música (era a época do indie, em que o legal era conhecer bandas de folk rock do interior do Arkansas que ninguém mais conhecia) e lia muita literatura.
Lembro de cabeça que ele me apresentou Jean Genet (“O diário de um ladrão”), Bukowski e Pedro Juan Gutierrez (um escritor cubano meio pornógrafo que na época eu amei e hoje em dia simplesmente não desce, tamanho o machismo, mas posso chutar que o “Rei de Havana” continua sendo um livrasso). Com certeza tiveram outros, mas esses foram os que mais me marcaram dessa fase.
Quando o alcancei intelectualmente, minha admiração morreu um pouco. Vi que a arrogância com que se posicionava sobre tudo era mais um instrumento de defesa do que um indício da amplidão da sua sabedoria de fato.
Não lembro se “Manuelzão e Miguilim”, meu primeiro Guimarães Rosa, li com esse namorado ou com o seguinte, também um intelectual. Mas tenho certeza que foi ao lado desse segundo que li “Pedro Páramo e Chão em Chamas”, do Juan Julfo; “Com os meus olhos de cão”, Hilda Hist; “As mil e uma noites”, e muitos outros.
Ele lia em voz alta “Grande Sertão: Veredas” pra eu dormir, uma das maiores demonstrações de ternura que alguém já fez por mim, e deve ter sido mais ou menos nessa época que depois de três tentativas de entrar nesse sertão que finalmente consegui engatar na leitura desse que é um dos meus livros favoritos de todos os tempos.
Mais ou menos nessa idade, mas sem dar crédito pra namorado nenhum, li bastante Gabriel Garcia Marquez, “Cem anos de solidão”, “Ninguém escreve ao coronel”, “Memória de minhas putas tristes”. Li mais Guimarães Rosa, “Sagarana”, “Primeiras estórias”. Li “O sangue dos outros”, Simone de Beauvoir; “O sumiço da santa”, Jorge Amado (eu AMO esse livro, hahaha). A poesia completa de Manuel Bandeira. Bastante Drummond, um bom quinhão de Manoel de Barros.
Ainda que tenha lido alguns bons títulos por volta dos vinte e poucos, a verdade é que conforme eu virava uma adulta, eu passava a escrever cada vez mais, mas ler cada vez menos.
Viciada em internet e redes sociais, o computador e o celular ocupavam cada vez mais meu tempo, e eu mal tocava em livros.
Entretanto, li uma coisa ou outra. “A autobiografia de um iogue”, “O Bhagavad Gita”; “O amante”, de Marguerite Duras (repare em quão poucas mulheres citei ter lido ao longo da vida). Sempre fui amante do erotismo e da escatologia então me deliciei lendo “A história do olho”, de Georges Bataille.
Bom, adiantando o filme um pouco, se é que ainda tem alguém aí do outro lado… Durante todo o ano de 2018 eu li sete livros, a maioria deles em formato virtual no kindle, sendo três de literatura, um de produtividade, dois de auto-ajuda, e um “Mulheres que correm com os lobos”, que eu não sei bem em qual categoria classificar.
Uma média bem baixa pra uma pessoa que (já) se dizia escritora e amante das palavras. Eu tinha chegado ao fundo do meu poço.
Livros lidos em 2018
- “Get Things Done”, David Allen – Janeiro / produtividade
- “Delta de Vênus”, Anais Niin – Fevereiro / literatura feminina erótica
- “Mulheres Que Correm Com Os Lobos”, Clarissa Pinkola Estés – Março / psicologia feminina??
- “O Sol na Cabeça”, Geovani Martins – Abril / literatura contemporânea brasileira
- “Lavoura Arcaica”, Raduan Nassar – Junho / boa literatura brasileira
- “O ano que disse sim”, Shonda Rhimes – Junho / auto ajuda
- “O milagre da manhã” – Hal Elrod – Dezembro / auto ajuda
Foram 7 livros em 2018, 18 livros em 2019 e até o momento (escrevo em novembro) 32 livros em 2020. Minha meta é de ler 50 livros por ano, esse ano a pandemia e todo o caos social me impediram de ler todos os dias (na verdade no meio do ano fiquei meses sem ler) então não vai rolar de bater, provavelmente. Mas isso não é o mais importante, e sim o desenvolvimento do hábito e a qualidade das leituras que estou fazendo. Esse bagulho tá realmente mudando minha vida.
Como esse texto já está enorme, vou fazer outro explicando como se deu essa mudança.