Um ritual simples e poderoso de auto-perdão

Existe qualquer coisa no fundo do olho de uma mulher que tem seus rituais. Qualquer coisa que a gente bate o olho e logo vê, logo sente. Um cheiro de alecrim a mais, por debaixo do perfume.

Uma espécie de aura, uma brisa fresca (às vezes doce e quente, dependendo do caso) que acompanha o movimento do corpo, e que às vezes caminha inclusive mais rápido que a dona, anunciando antecipadamente a sua presença.

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Gosto de tomar meus banhos de erva toda semana, mas a lua cheia no céu traz consigo outros convites e compromissos. Nessas noites, além de jogar o preparado aromático do pescoço pra baixo costumo também lavar e programar energeticamente meus cristais.

Ontem a lua estava cheia, cheia de doer, mas meus irmãos recebiam visitas, as primeiras de um longo tempo de reclusão pandêmica (na quarentena estamos morando juntos no interior) e o vai e vém na cozinha me inibiu as vontades de pôr meu caldeirão no fogo.

Escrevo do fim de novembro de 2020, um ano de testar a fé de qualquer cristão. Apesar de tudo, hoje me sinto surpreendentemente feliz.

No campo político, me pego lavando louça com os olhos molhados de esperança ao vislumbrar uma frente ampla contra o fascismo composta por nomes como Guilherme Boulos. Quem sabe ele não se elege de fato prefeito de São Paulo? Sonhar ainda é de graça.

No campo pessoal, uma calmaria: não morro de paixões por ninguém, mas minhas feridas de amor também não mais purulam; reina a paz.

Depois de tempos de vacas magras e incertas, na vida profissional finalmente sinais de flor e fruto: segunda começo um freela que tem tudo pra virar fixo.

Pelo visto é o fim, ou a interrupção, dos tempos de “faço meus horários como quero”. Pra me despedir, resolvi aproveitar o meu último fim de semana de liberdade o melhor que pude.

No sábado, tomei sol, ouvi bolero e li o dia todo – em tempos de quarentena e isolamento social, o ápice do que a palavra “relaxar” pode significar pra mim.

No fim da tarde, ao tirar a roupa percebo que o sol me queimou bastante. Arredondado, inchado e sensível, meu corpo dá sinais que a menstruação logo vem.

Meus peitos, naturalmente grandes, estão imensos, duros como se em seu interior, por debaixo da carne macia, houvessem duas pedras no formato de punhos cerrados. Quando estão assim, inútil resistir ao impulso de apertá-los o dia inteiro. Cedo ao prazer de testar os limites do que já está à flor da pele.

Penso no que significa esse trabalho fixo depois de tanto tempo sem ter patrão. Por um lado antevejo a tão sonhada estabilidade financeira (um salário fixo, direitos trabalhistas, pense só!)… Por outro, e meus sonhos? Vou conseguir dar continuidade à minha arte e meus projetos pessoais?

Como meu tempo livre se reduzirá bastante, decido escrever. De banho tomado, a pele sensível de sol por debaixo da roupa – um pijama leve escolhido especialmente pra mais um sábado de quarentena – levo o computador e uma almofada pra rede da varanda.

A lua cheia banha o ambiente com uma luz perolada e dispensa qualquer eletricidade humana. Começo um texto. Queria falar sobre relacionamentos, sobre como o Vadinho de Jorge Amado me lembra um ex-amor

…mas quando vejo tô falando de trabalho, amizade, traição, espiritualidade, saúde mental, internet. Dou voltas, misturo os assuntos todos, não sei ir nunca direto ao ponto.

Não sei trazer o que penso sem falar do que sou e do que vivi, e tudo que tenho pra dizer me sufoca, como duas mãos a me impedir a respiração. Na minha história tudo se cruza. Afinal de contas, qual o limite entre as dimensões da vida?

O que escrevo… Tudo pessoal demais quando devia ser objetivo, científico, jornalístico. Devia? Que formato de texto é esse meu? Até onde me expôr? Sinto vontade de chorar, mas o choro não vem. Sinto vertigens, escrever me dá vontade de vomitar.

Estou com o Instagram desativado há alguns dias.

Se eu tivesse com ele ativo talvez não teria passado o dia lendo, e provavelmente aplacaria essa angústia que sinto em uma série obsessiva de stories que eu logo apagaria.

Mas no momento não tenho Instagram para amortecer a minha dor. Insisto no desconforto.

Se os acontecimentos da minha vida se embolam me fechando a garganta e o tempo todo se intrometem na minha escrita, resolvo mais não brigar com o que me atravessa. Se o passado reclama palco, cedo.

Abro uma página em branco e Instintivamente começo a enumerar os anos pregressos. 2020, 2019, 2018, 2017, 2016, 2015…

O ritual se inicia

Sob cada ano, deixo que a torrente venha.

Em forma de lista coloco os principais desafios de cada ano, tudo que aconteceu comigo de mais doloroso em cada um dos períodos.

Logo começo a completar não só com o que foi doloroso, mas com tudo aquilo que foi mais marcante: Onde eu trabalhava em x ano, com quem eu namorava, as viagens que fiz, os rolês inesquecíveis, os perrengues que passei.
Tudo sem muita elaboração ou explicação; só títulos, acontecimentos.

É como se minha vida fosse um negativo de filme fotográfico e eu a pegasse com a mão, só que pesa uma tonelada. Quanta pedrada vivi nos últimos anos!

Tenho o hábito de investigar minha própria história, a conheço bem, mas nessa noite as lições e padrões de acontecimentos saltam aos olhos com especial clareza.

Numa espécie de transe, vou de 2020 à 2006. A lista de acontecimentos diminui em intensidade e volume conforme nos afastamos na linha do tempo.

Em frente de cada ano coloco o número do ano pessoal que vivia de acordo com a numerologia. Faço relações entre anos regidos pelo mesmo número e tento entender o que posso esperar no próximo ciclo.

A cabeça processa números, memórias e sentimentos. O coração bate rápido e eu me sinto levemente zonza, como se a parte da frente da testa e a ponta dos dedos vibrasse na mesma frequência.

Apesar de completamente sozinha na noite clara de lua, sinto que algo me envolve.

Percebo uma espécie de funil acima da minha cabeça, de onde a mesma luz noturna e perolada que ilumina a varanda se derrama liquifeita sobre a minha testa.

Peço que meus guias venham me amparar nesse momento. Os imagino/visualizo de mãos dadas em corrente ao redor da rede. O choro retido finalmente vem.

Quanto sofrimento vivi nos últimos anos. Quanta pedrada no lombo! Algo em mim moldado pela educação kardecista acredita que é Karma: atraí e eu sou de alguma forma responsável por tudo que aconteceu. Peço perdão à Deus.

Mas lá no fundo de mim, escuto uma voz suave e firme que sussurra que o perdão que peço e preciso, é a parte de mim que é Deus – o que sou de mais essencial e primevo – quem vai ser capaz de me dar.

Mais uma vez, permito sorver pela testa essa luz branca, levemente dourada, que se derrama sobre minha cabeça como se fosse um filtro* de vinho.

Intimamente, sob a testemunha da lua cheia e dos meus guias que me rodeiam, me dou o perdão, sabendo que a cada tempo fiz o melhor que dava conta, segundo o meu grau de consciência na época.

Percebo então que por mais desafiador que tenha sido o ano de 2020, ano de pandemia e isolamento social, ele foi pra mim menos doloroso do que foram os últimos anos de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019.

Dei importantes passos esse ano. Fui capaz de ampliar a minha consciência em importantes aspectos, abandonar padrões de dor e decidir o que eu quero pra minha vida, colocando direcionamento pras velas do meu barco.

A partir do auto-perdão senti a leveza do entendimento de que o que vem não precisa seguir laços de fidelidade com sofrimento do que passou; que a dor pode ficar no passado e que eu tenho a completa liberdade de trilhar o futuro com os ombros leves, sem culpa, dando o meu melhor. Passos firmes na direção do caminho que eu decido trilhar.


*Observação: achei uma imagem melhor pra explicar como era o tal funil que derramava luz. Na ayurveda, a medicina tradicional indiana, existe uma técnica de massagem chamada Shirodhara, na qual um fio de óleo morno e contínuo é aplicado sobre a testa. O recipiente que contém o óleo é mais ou menos como o que eu descrevi acima. Pra quem quiser imaginar, é mais ou menos isso.

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